quarta-feira, 26 de outubro de 2016

#19 - DESFILE DO POVO ALEMÃO, Bertolt Brecht

Decorridos cinco anos nos disseram
que aquele que a si próprio se intitula
enviado de Deus já aprontou
sua guerra, os armamentos;
da forja já saíram os seus tanques,
canhões e cruzadores, e são tantos
os aviões poisados em suas pistas,
que a um gesto seu o céu se toldará.
Pensámos ver que o povo era o chamado
a empunhar estandartes, que homens,
que estado ou pensamento eram os seus.
Passámos em revista o povo alemão.

E logo vimos vir
a multidão confusa
e pálida, a seguir
os traços de uma cruz
em sangue inscrita;
que é fácil iludir
em tais pendões a turba.

Vimos marchar prá guerra
alguns homens joviais
e vimos sobre o chão
rastejar muito mais.
Nem pragas, lamentos,
perguntas, nem ais,
que tudo abafavam
as músicas marciais.

Passaram cinco invernos,
e agora com seus filhos
vêm e com as mulheres.
Não crêem ser possível
mais cinco outros haver.
Assim, trazem consigo
também doentes, velhos,
e perante nós desfilam
em numeroso exército.




(versão de Fiama Hasse Pais Brandão)

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

#18 - OS MORTOS PERGUNTAM, António Neto

Nos rumos perdidos dos ventos trocados
       Todos os rumos,
Nos fumos das piras dos mortos cremados
Todos os fumos,
de todas as piras...
Nas iras dos mares
Que beberam sangue
Todas as iras...
Na ânsia enlutada de todos os lares
       Vazios de esperança
Todas as ânsias
De todos os lares...
Nos sexos sangrentos das virgens violadas
Os farrapos
a sangrar
De todos os sonhos que homens sonharam
E homens violaram...
Em todas as dores dos vivos da terra
       todas as dores dos mortos da guerra...
E os rumos perdidos
e os corpos ardidos,
e as iras inúteis,
e as ânsias caladas,
E os sonhos, sujos como vidas de virgens violadas
E todas as dores
de todos os mortos que a guerra matou,
e todos os lutos
de todos os vivos
que a guerra enlutou,
       Perguntam,
perguntam,
perguntam
a todos os ventos
a todos os mares
às roupas de luto de todos os lares,
Se valeu a pena...
...Os mortos perguntam...
Mas os ventos trocam-se,
o mar não serena
as viúvas continuam a chorar,
e os mortos não páram de perguntar
se valeu a pena...
...Mas a esperança é longa
e bela de agarrar no fundo dos martírios...
Os mortos perguntam,
os mortos protestam...
...Irmãos, os braços são magros,
mas longos,
Longos da ânsia de querer...
...A pergunta é grande e a força é pequena,
mas nós só podemos, Irmãos, responder,
Se valeu a pena...

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

#17 - NO ANIVERSÁRIO DA PAZ, Augusto Gil

Musa da guerra, que alegrias cantas?
Quem ergue e agita as triunfantes palmas,
Se um espasmo de dor prende as gargantas
E a treva ensombra os corações e as almas?

Ainda a vitória não desceu à terra...
Ainda, ainda é um falso nome...
Mas se deliu um torvo espectro -- a guerra,
Aumentou logo o velho espectro -- a fome.

Amorteceu o pávido estampido
Das vozes dos canhões, repercutentes,
Mas enche o mundo inteiro outro ruído:
-- Milhões de bocas a ranger os dentes!

Há nos tratados expressões de paz,
Mas interroga e brada a multidão:
Que bem nos veio dela? O que nos traz,
Se não nos deu contentamento e pão?