sexta-feira, 31 de março de 2017

#22 - CANTO PENINSULAR, Manuel Alegre

Estar aqui dói-me. E eu estou aqui
há novecentos anos. Não cresci nem mudei.
Apodreci.
Doem-me as próprias raízes que criei.

Foi a guerra e a paz. E veio o sol. Veio e passou
a tempestade.
Muita coisa mudou. Só não mudou
este monstro que tem a minha idade.

E foi de novo a guerra e a paz. Muita coisa mudou
em novecentos anos.
Eu é que não mudei. Neste monstro que sou
só os olhos ainda são humanos.

Quantas vezes gritei e não me ouviram
quantas vezes morri e me deixaram
nos campos de batalha onde depois floriram
flores e pão que do meu sangue se criaram.

Andei de terra em terra
por esse mundo que de certo modo descobri.
E fui soldado contra a minha própria guerra
eu que fui pelo mundo e nunca saí daqui.

Mil sonhos eu sonhei. E foram mil enganos.
Tive o mundo nas mãos. E sempre passei fome.
Eis-me tal como sou há novecentos anos
eu que não sei escrever sequer o meu próprio nome.

Falam de mim e dizem: é um herói.
(Não sei se por estar morto ou porque ainda não morri)
Mas nunca ninguém disse a razão por que me dói
estar aqui.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

#21 - PRIMAVERA DE BALAS, José Craveirinha

Agarro
Na minha última humilhação
E sem ir embora da minha terra
Emigro para o Norte de Moçambique
Com uma primavera de balas ao ombro.

E lá
No Norte almoço raízes
Bebo restos de chuva onde bebem os bichos
No descanso em vez da minha primavera de balas
Pego no cabo da minha primavera de milhos
E faço machamba ou se for preciso
Rastejar sobre os cotovelos
E os joelhos
Rastejo.

Depois

Escondido em posição no meio do mato
Com a minha primavera de balas apontada
Faço desabrochar no dólman do sr. Capitão
As mais vermelhas flores florindo
O duro preço da nossa bela
Liberdade reconquistada
Aos tiros!